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segunda-feira, 24 de maio de 2010

Diz Não à Violência Doméstica

Há dias iniciei uma campanha contra a violência doméstica. 
Acontece que a Pedrasnuas postou um conto da sua autoria que foca este mesmo problema. Porque gostei do conto, porque o tema é mais do que pertinente, porque gosto da partilha e ela autorizou-me a reblogá-lo vou tentar usar, novamente, uma ferramenta do blogger que nunca usei antes. Disse "novamente" porque há bocado não me saí bem...

***
Libertação

- Mãe, não chore, daqui a algum tempo estarei de volta…
- Oh filha, eu sei, mas isto não deixa de ser uma despedida…
- Mãe nem sei como hei-de agradecer tudo o que tem feito por mim…
- Tolinha, a minha recompensa é ver-te feliz na vida!
- Espere mãe, diga-me, ambas estamos a ver o Johnny aqui?!
- Não acredito, talvez veio despedir-se de algum familiar! Ignora-o simplesmente!
- Ele está parado a observar-me…hum, que pretende agora?
- Esquece-o, nem repares nele, não merece!
- Bem mãe, tenho mesmo que ir… ei… Nós prometemos não chorar, senão eu começo também…
- Vai lá, boa viagem! Qualquer coisa não me poupes…
- Para onde é a ida, Jackie?
- Já há algum tempo que a minha vida não te diz respeito!
- Para mim diz, casamos pela igreja, isso quer dizer que a relação é insolúvel!
- A igreja também fala das obrigações e deveres do marido para com a esposa, e judicialmente estamos separados…
- A culpa foi, é e será sempre minha, eu nunca tenho razão! Tu sabes tudo…
- Agora não, a minha paciência já se esgotou, deixa-me passar, está bem?
- Isso, foge, foge para longe das tuas obrigações! Um dia voltas e eu vou estar aqui para te lembrar…
- Eu não estou fugindo de nada e muito menos de ti, pretendo realizar o meu trabalho de investigação, vou continuar os estudos, uma vez que os interrompi por tua causa…


- Mulheres que pensam como tu não vão longe, pensas que és superior a mim…
- Tenho pressa, não me faças perder mais tempo…
- O teu lugar é a meu lado…
- Outras coisas muito mais importantes esperam-me, mãe adeus, até à volta…
- Adeus querida filha, vai em paz!



O avião descolou rasgando o ventre da manhã com tanta força, que desfez tufos de nuvens à sua passagem, para depois perder-se dentro delas.
Jackie acomodou-se no assento, e recostou-se para trás; todas as ligações cerebrais enfileiravam-se para o pretérito. Agora podia reflectir pausadamente, sobre o que sucedera nos últimos anos da sua vida. Fora feita prisioneira de quem? Daquele paranóico ou de si própria? Por mais que pensasse e repensasse naquele momento, não encontrava lógica para tamanho sacrifício. Tudo em nome da paixão ou obsessão? O receio do escândalo, a vizinhança galhofando, as compaixões, o seu nome e o da família pela lama.Ela, filha única, ligada àquela criatura que viria a estragar o sangue da raça, cobrira a sua casa de vexame. Então em nome do medo calou-se, sem um grito de furor ou revolta, mordendo a cólera. Lamentava naquele instante, as sucessivas discussões, as injúrias, e, pior, as pancadas, os murros…Quando a mãe soube, chorara também, nem queria imaginar que aquele corpo que ela outrora embalara nos seus braços, era brutalmente espancado. Então arremetida de uma natural complacência aconselhara logo a filha a separar-se daquele “animal”. Depois vieram as chamadas telefónicas com ameaças, as perseguições, as provocações em público…Acordara tão tarde! Gastara energias em vão! Porque não se decidira mais cedo? A máquina do tempo é implacável, a vida é tão breve…que urge aprendermos a saber vivê-la.
Um dia olhamos para trás com nostalgia, à procura dos momentos ditosos como prémio de consolação, por termos envelhecido e estarmos a chegar à meta.


Que razão poderia justificar uma união baseada na mentira, na hipocrisia, no egoísmo, na falta de respeito, no ódio… Se pelo menos tivesse sido por uma questão material, mas não, o comodismo amarrara-a e deixara-se agrilhoar a um homem que a mantinha como um objecto, neutralizara os sentidos para não ver, não ouvir, não racionalizar, não enfrentar a situação que se agravava dia a dia. Ela que fora uma mulher inteligente e perceptiva. Ou a menos que aquele homem representasse alguém do passado…quem então? Muito provavelmente um fantasma da infância, talvez um dia essa misteriosa personagem aflorasse à superfície para ajudar a esclarecer aquela fase da sua vida. Parecia-lhe a forma mais viável de se conhecer um pouco melhor. As queixas, as lamúrias são próprias das crianças. Felizmente não optara por esse papel, de qualquer forma também não agira. Algum sentimento reprimido tinha-a acorrentado.
Cerrou as pálpebras e rememorou num eco longínquo, as últimas palavras proferidas pelo marido, no dia anterior à separação:
- Podes ter a certeza que não te vou dar descanso! Não me deste o filho que desejava ter…como amante vales zero…estúpida!
A voz da hospedeira despertou-a:
- Senhores passageiros, o avião não pode seguir directamente para Roma, o voo não foi alterado, demoraremos mais algum tempo no ar, a situação está sob controlo, por isso continuação de boa viagem e obrigada pela atenção.

Jackie voltou-se para o passageiro do lado e observou sorrindo que este dormia profundamente, expelindo o ar pela boca carnuda. Enquanto roncava, o bigodinho curto de mosca pousado no lábio superior, saltava ao ritmo cadenciado dos roncos. A cabeça parcialmente calva pendia para o lado dela. O nó da gravata asfixiava-o inchando o rosto vermelhusco.


Ela arqueou as sobrancelhas surpreendida com a tranquilidade que aquele homem lhe transmitia, para depois regressar logo de seguida às suas reflexões; valeria a pena virar-se tão integralmente para o pretérito? Já meditara o suficiente, analisara fio a fio no consultório da terapeuta. Para quê perder mais tempo a carpir as mágoas que o tempo encarregar-se-ia de apagar. O mais sensato seria preparar-se para renascer e ser de novo amada. Um dia as feridas cicatrizariam e ficaria em paz, restaria apenas a textura do rasgão, algo áspero e inesquecível mas que a tinham ajudado a crescer, fortalecendo-a. Havia-se humanizado e compreendido uma série de acontecimentos que de outra forma seria impossível assimilá-los.
A voz da hospedeira ouviu-se de novo um tanto apreensiva:
- Senhores passageiros preparem-se para uma aterragem de emergência, apertem os cintos de segurança, por favor mantenham-se calmos, coloquem a cabeça entre os joelhos e as mãos por cima para se protegerem. Obrigada e cumpram rigorosamente as instruções.
Gerou-se uma onda de pânico, os passageiros entreolharam-se assustados e comentavam uns com os outros sobre o local de aterragem, pois alguns até sabiam que por perto não existia nenhum aeroporto, portanto esta descida acarretava muitos riscos.Jackie partilhava do mesmo sentimento de pânico das outras pessoas, porém, surpreendeu-se quando reparou que o indivíduo vermelhusco continuava a dormir e a leste dos acontecimentos. Então resolveu sacudi-lo:
- Acorde, o senhor tem de se proteger!
Os seus apelos foram inúteis, pois este deu-lhe uma cotovelada e resmungou:
- Deixe-me em paz e não me chateie…
Baixou-se deveras indignada e enterrou a cabeça entre os joelhos conforme as instruções.


Os minutos que se seguiram apagaram-se numa amálgama de gritos, gemidos, sons metálicos estranhos, tudo rodopiou com fortes impactos, mergulhando num silêncio infernal e lúgubre.
Quando Jackie abriu os olhos e reparou perplexa no manto branco, justo e acetinado que trazia no seu corpo. Mal conseguia suster-se de pé devido ao peso das asas, cuja penugem alvacenta estremecia com o roçar da brisa que corria. Em seguida, viu como a relva fresca, húmida e verde crescia sob os seus pés descalços. Boquiaberta e confusa pôs-se a andar devagar. A determinada altura encontrou um pequeno lago azul que espelhava fielmente as nuvens de um branco puro. Cuidadosamente enterrou os pés na água fria e límpida, inclinou-se para a frente e estremeceu com a própria imagem reflectida. Mal podia acreditar que esta imagem flutuante era a sua! Que estranha beleza?! Nunca tinha notado?! Nunca parara para olhar para si! Baixou-se para se ver melhor…Examinou minuciosamente os olhos garços, as pestanas negras, compridas e enroladas, a pele de tez amarelada, a cabeleira com fios negros e sedosos escorregavam pelas costas. Devagarinho acariciou o rosto oval e deliciou-se nesse gesto. Uma onda de prazer invadiu o ego embriagando-a. Viu-se semelhante a uma dessas deusas gregas de que narra a História.
De súbito um grupo de aves surgiu no horizonte… Depressa esqueceu-se de si, para prestar atenção àquele espectáculo! Mas nos instantes seguintes franziu o sobrolho, porque notou qualquer coisa de estranho; elas vinham a grande velocidade e amontoadas como se formassem um esquadrão… Jackie desconcertada esqueceu-se das suas asas, gelou toda e petrificou.Num pestanejar entreviu os pés nus e negros de um ser humano! Lutou contra todas aquelas sombras alucinatórias, todavia, desiquilibou-se e tombou pesada na parte mais funda do lago, provocando um ruído estrondoso, libertando milhares de jactos de água. Submergiu e ficou encalhada no fundo, uma ponta do manto rasgou-se e ficara presa a um montículo de rochas escarpadas. Numa aflição doida tentou desenvencilhar-se. Contudo, ficou assustada quando se deparou com umas mãos de cor, gigantes?!...Aquelas mãos faziam-na sentir minúscula! Porém, foi o poder mágico dessas mesmas mãos que arrastaram o seu corpo até à superfície. Jackie tossia incessantemente e tiritava até à raiz dos cabelos. Olhou em redor à procura da personagem misteriosa, no entanto, ali, reinava só a presença do sol, coalhando o chão, indo espetar-se de rompante no horizonte. Ergueu-se num esforço doloroso, sacudiu as asas, já que molhadas tornavam-se um fardo difícil de carregar. Apercebeu-se que estava praticamente nua, então, pensou seriamente em fugir dali voando. Seria capaz de usá-las? Em escassos segundos pôs-se a reflectir sobre a sua existência naquele lugar, não compreendia a lógica, teria mesmo morrido? Se tinha asas…então transformara-se num anjo! Portanto tinha chegado ao paraíso! Durante a infância a avó materna incutira-lhe no espírito a fantasia de que a morte era alguém que tomando-a nos braços lhe traria um sono doce e repousado, para de seguida transportá-la ao Assento Eterno. Ali marcaria o seu encontro com Deus, Jesus Cristo, os anjos, os arcanjos…Haveria árvores viçosas, pássaros a cantarolar, rios frescos, claros e um céu azul sem nuvens tormentosas. O mal não teria mais lugar. O único poder deste reino seria o amor, o verdadeiro e sublime amor.
Ela lançou um grito ao vento, mas foi o eco que voltou como resposta. Este silêncio incomodava-a e parecia sufocá-la. Desesperada desatou a chorar:
- Avó, onde estás? Aqui não encontro a tal paz! Estou só, triste e abandonada…Meu Deus, onde estou?
Apertou os braços contra si, num gesto de auto protecção, sentia-se completamente desamparada. Era mesmo como se fosse uma cega em busca de luz, um facho que lhe indicasse uma direcção. Respirou fundo e resolveu não se deixar dominar pelo medo. Tinha forçosamente de encontrar um caminho, por isso, encheu-se de coragem e determinação; principiou por experimentar as asas, quando ensaiou o primeiro voo, milhares de salpicos de água saltaram para todos os lados e descontrolada caiu para trás. Repetiu a operação diversas vezes sem sucesso, depois lamuriou-se:
- Para que me servem estas asas se não sei voar…
No auge da fúria soltou um gemido abafado e por fim lá conseguiu subir desengonçada num voo rasante, ficou tão entusiasmada! ... Uma alegria esfuziante entonteceu-a e lançou-se a toda a força na busca de outro voo um pouco mais alto…Que sensação extraordinária! Então recordou-se de que já ouvira algo semelhante sobre a arte de executar voos. Aprendera que no íntimo de cada um existe uma vontade de ir mais além, então, pôs-se a cantarolar para espantar o receio.
- Acorde por favor! -Exclamou uma voz masculina.
- Eu já morri…-Lamuriou-se
- Não morreu coisíssima nenhuma!
As pálpebras cerradas moveram-se delirantes numa curiosidade insaciável, pois tinha urgência em terminar com aquele jogo infantil de cabra cega. Meneou a cabeça, todavia nada!
- Sossegue, o pior já passou! -Segredou-lhe ao ouvido com doçura.
Havia feito um tremendo esforço para no último instante abandonar-se e resvalar pelo inconsciente abaixo:

- Mamy! Mamy! Onde estás, tenho medo?!...
- Estou aqui querida, psiu, fica tranquila…
- Eu tive um sonho mau, ficas comigo esta noite?
- Fico meu amor!
Numa aliança envolta em carinho mãe e filhota adormeceram abraçadas.
- Mãe, perdi a minha boneca!
- Oh filha, não fiques assim, fazemos outra!
- Mas eu queria a outra!
- Até lhe podemos pôr o mesmo nome, que achas?
- Está bem, e vamos encher a cabeça dela com aqueles fios de lã amarelos, como fizeste com a outra?
- Tudo igual, queres apostar?

- Isto de ser filha única é uma chatice!
- Não refiles comigo que eu não gosto!
- Eu fui convidada…
- Podes ir com a condição de não ultrapassares a hora que já determinamos, da última vez falhaste…
- Prometo que desta vez chego à hora marcada!
- Outra coisa, nada de álcool!
- Oh mãe, que exagero, só bebi um copo, mas está bem, nem uma gota!
- Cuidado com os rapazinhos…
- Mãe! Por Deus!
- Vai-te lá embora!
- Até logo!

- Jackie, já te conheço, para onde foi a tua alegria?
- Impressão sua…
- Não sou cega! Disfarças mal, não me enganas! É o casamento, não é?
- As confusões de sempre…
- Ele maltrata-te? O que é que está a acontecer?
- Para ser franca as coisas têm corrido mal, mas nada importante…
- Havemos de ter uma conversinha para esclarecer isso, sinto-te muito diferente! Sou tua mãe e preocupo-me contigo…


- Jackie, adoeces e ninguém me avisa! Se não fosse a tia Angie não sabia de nada!
- Não se trata de doença, estou de cama porque o Diego me bateu.
- Santo Deus, desde quando?
- Desde o início.
- Porque não me contaste?
- Não queria preocupá-la ainda mais, a mãe desconfiava e eu procurei esconder, receava um confronto entre vocês! Penso que mesmo depois de tudo não sou capaz de sair disto!...
- Tu és capaz, mereces mais e melhor, vou levar-te já daqui, se tu não consegues fazer-lhe frente eu faço-o por ti! Nunca te vi assim…
- Tenho medo por si e por mim!
- Ele vai matar-nos às duas, é? Tenho o carro lá fora, levo-te para casa da tia, a ideia de dirigir durante a noite não me agrada, pela manhã vamos para o nossa casa.
- Ui! Dói-me o corpo todo…
- Pudera! Estás toda marcada! Fico zangada por me teres escondido a gravidade da situação.
- Mãe…
- Não digas mais nada!

Jackie resvalava num precipício, o obscuro arrastava-a e absorvia-a nas suas entranhas lúgubres.
- Diga como se sente?
Novamente aquela voz, parecia realmente querer acordá-la, contudo, misturava-se com outras, todas juntas acabavam por confundi-la…
- Regresse à vida! – Insistiu a mesma voz.
Piscou os olhos apressada e finalmente deu de caras com um homem negro, debruçado.A primeira reacção foi de susto, parecia-lhe inimaginável estar a ver no paraíso um homem de cor, nunca fora racista, a mãe sempre lhe ensinara a gostar das pessoas independentemente do sexo, do credo, da raça, da cor da pele…mas sempre imaginara que lá no céu fosse tudo de raça branca!
- Eu conheço-o? -perguntou num foi de voz.
- Não-Respondeu ele – no entanto fiquei aqui muito tempo consigo, assisti aos seus delírios…Os seus ferimentos apresentavam sinais de gravidade, cheguei a pensar que iria perdê-la, teve temperatura muito alta, passou mesmo um mau bocado, felizmente os meus tratamentos resultaram e está salva!
- Estou no planeta terra, na companhia de um padre!? -Indagou com alguma dificuldade.
- Exactamente senhorita!
- No continente africano, agora deixe as questões de lado e procure repousar, cada coisa a seu tempo, está bem assim?
- O senhor é que sabe.
Jackie foi recuperando gradualmente nos dias que se seguiram, até ficar quase totalmente restabelecida. O período de convalescença fora longo, porém, física e psicologicamente estava ilesa.
Por uma ocasião, ela aproximou-se do sacerdote e perscrutou mansamente:
- Sam, como foi que me encontrou e que sítio é este?
- Em relação à primeira pergunta, como a encontrei, foi provavelmente obra do acaso, na ocasião regava a horta, de repente faltou a água, aborrecido decidi ir até ao poço grande, para saber do que se tratava. Descobri que o cano à saída do poço tinha problemas de obstrução, apesar de aparentar simples não foi fácil de resolver. No regresso dei consigo, em muito mau estado. Respondendo à segunda pergunta, esclareço-a de que se encontra na Namíbia. -Ele foi lacónico na sua descrição.
- Pelo menos fala inglês, o que facilita a comunicação!
- Você só podia ser britânica, pelo sotaque…
- Não compreendo como é que não está a par de nada do acidente!? -Observou deveras admirada Eu não surgi do nada…
- É lógico que não, mas não esqueça que isto aqui é o fim do mundo! Espero por uma avioneta de tempos a tempos, é ela que me traz as notícias do mundo, materiais e mantimentos de que necessito…depois do que lhe sucedeu a si a avioneta não voltou, às vezes acontecem atrasos, tempestades pelo caminho, recuos…
- E quando vier posso ir embora?
- É óbvio! Não é minha prisioneira! -Rematou sério
- Sam, porquê este lugar tão isolado?
- Talvez seja uma fuga…
- Está fugindo do quê ou de quem?
- De mim próprio.
- É padre por convicção?
- Mais ou menos!...
- Estranha resposta, essa, “mais ou menos”!...
Sam elevou ligeiramente o tom de voz:
- Não julgue as pessoas sem primeiro as conhecer, diga francamente que fantasias tem a meu respeito.
- Pelo menos vilão não deve ser, a sotaina pode querer dizer ou não alguma coisa, se me quisesse matar tê-lo-ia já feito, nem faria sentido salvar-me a vida para depois roubá-la…Não deixa de ser misterioso…, a não ser…
- A não ser o quê?
- Você pode ser um fugitivo, por acaso apareci no seu caminho, salvou-me a vida e em troca vai exigir o meu silêncio, se denunciá-lo não terá pejo em aniquilar-me. Certo?
- Não vai denunciar ninguém, sua mal agradecida! - Ele bramiu encolerizado e os seus olhos irradiaram faíscas de raiva. Num movimento brusco puxou-a pelo braço, até fazê-la soltar um gemido. -Pensando bem, faça isso, até me faz um favor-Pronunciou num tom mais calmo e rouco, depois afastou-se desaparecendo na mata. Ela foi-lhe no encalço, quando chegou perto:
- Sam, você é procurado pela polícia?
- Sou.
- Não me quer explicar o motivo? -Inquiriu num tom complacente
- Matei o meu pai! -Respondeu numa lamúria.
- Quer falar disso?
- O meu pai batia sistematicamente na minha mãe, eu odiava-o por isso, um dia regressava da faculdade e perdi a cabeça quando percebi que ele estava a violá-la, não fui capaz de ficar quieto e atirei-me, rolamos ambos para o chão. A minha mãe tentou apartar-nos, depois ele agarrou-a e apertou-lhe o pescoço, culpava-a dos meus grossos modos, julguei que ele ia matá-la ali mesmo, e foi isso mesmo que aconteceu, possesso fui à cozinha, agarrei numa faca das grandes e quando voltava à sala numa correria louca, não imaginei que meu pai pudesse ter ido ao meu encontro, chocamos um contra o outro de frente e a faca meteu-se toda nas entranhas dele, foi uma sensação pavorosa! a minha ideia não era a de cometer o crime, mas apenas assustá-lo, no entanto…
- E a sua mãe?
- O malvado matou-a por estrangulamento!
- É melhor irmos, está a escurecer - sugeriu Jackie.
- Também acho, vamos!
Já no quarto, estendeu-se no leito pensativa, um nervosismo invadiu-a; uma história de vida semelhante à sua, só que esta terminara de forma trágica. Aquele homem falara-lhe com o coração, dera-lhe um voto de confiânca, merecia como prémio tolerância e compreensão. Não podia supô-lo lá fora, abandonado, triste e machucado…Abriu a porta devagar e fitou-o à distância. Sentado sobre o muro que dava para o jardim, recortado na luz frouxa da lua, imóvel e perdido em pensamentos. Aproximou-se receosa, em bicos de pés para não incomodar muito e perguntou timidamente:
- Posso fazer-lhe companhia?
- Se quiser…
- Quer falar de algum assunto especial, ou prefere ficar calado?
- Pergunte o que entender.
- Veio para cá porque razão? -Indagou curiosa.
- Vim na busca de um refúgio, a polícia tentou deitar-me a mão mas não conseguiu, morreria dentro de uma cela, contudo, a culpa por um pecado não expiado atormenta a minha consciência. Resolvi ficar exilado aqui, esta é a minha clausura, sob o disfarce de sacerdote. -Ela escutava-o atenta -A minha religião é da minha conta e de mais ninguém, creio em Deus, admiro muito Jesus Cristo por ter sido um guerreiro manso…sei que gostaria de estar mais activo, infelizmente não é possível, ele está comigo, perdoa-me, e é isso que me interessa! Não acredito na justiça dos homens, Deus dará a sua sentença. O que vem de cima não me assusta…satisfeita?
- Lamento sinceramente por tudo o que passou, e o que ainda sofre…
- Já não sofro, sinto-me calmo e sereno, estou aqui há dez anos, e pretendo continuar, trata-se de uma opção, aqui purifico-me a cada dia…encontrei um outro Sam dentro de mim.
- Curiosa a história dos seus pais, é tão semelhante à minha! O meu ex-marido também resolvia tudo à estalada, e quando bebia ia mais longe, olhe que esta droga do álcool atinge toda a gente, é mesmo uma maldição, ele nunca reconheceu que estava doente, nem procurou qualquer tipo de ajuda! Além disso tinha um feitiozinho dos diabos, enfim…naquela altura eu olhava para mim com muita pena e vergonha, pois pensava ser a única a sofrer. Quando entrei para o grupo de apoio aos familiares de alcoólicos, percebi quantos mais passavam pelo mesmo, foi ali que me descobri, quis saber quem era na verdade, depois iniciei um tratamento individual de terapia, num consultório privado. E você Sam teve algum tipo de apoio?
- Sim, um professor da faculdade com quem tive grandes conversas, uma vez por outra vem até aqui, viaja para estar comigo, é um homem com muitas qualidades! Sabe, nós sofremos muito, você e eu, isso está escrito nos seus olhos, nos meus olhos, todos temos as nossas feridas, umas mais rasgadas e fundas, finja que não lhe dói. Olhe para o futuro, o que se quebrou, quebrou…Agarre-se aos pensamentos positivos …ouça música relaxante, dance, vá ao cinema, esteja com amigas, realize-se como profissional e como mulher. Confie nos seus dons, na sua beleza interior…procure fazer o que lhe dá mais prazer! Valorize-se!
- Oh, Sam, você é demais!...Já sinto pena de me ir embora!...-Exclamou com ternura.
- Vamos dormir, amanhã tenho uma longa jornada pela frente!
- Posso ficar mais um pouco?
- O bicho papão pode aparecer e raptá-la, mais sentimentos de culpa não!
Riram ambos e entraram na casa
Pela madrugada foi bater-lhe à porta do quarto:
- Jackie, já acordou?
- Já, dormi muito pouco!
- Por causa do bicho papão?
Sorriram, ele chegou-se para mais perto dela, e, devagarinho pronunciou:
- A avioneta chegou, a Mary veio com o piloto…
- Quem é a Mary?
- Uma velha amiga, dei-lhe guarida há alguns anos, vivia com o marido numa casa perto desta, entretanto ele faleceu, como estava só, sem ninguém, convidei-a a ficar cá! Um dia foi embora porque queria conhecer o mundo antes de morrer, regressou hoje!
Fitaram-se mutuamente, encararam-se de forma profunda:
- Estou fascinada consigo Sam…
Não se contendo mais, ela lançou-se num beijo e ele sem hesitar correspondeu de forma intensa e apaixonada. Como dois adolescentes, de olhos nos olhos, tomaram o café da manhã juntos para de seguida receberem Mary e o piloto. O material que Sam aguardava não viera, burocracias! Motivo que o deixara aborrecido.Nao faltaram os enlatados e produtos de limpeza, entre outros bens de primeira necessidade. Almoçaram os quatro entusiasmados com as novidades que Mary, a negra, contava na sua voz nasalada, sorria quando falava, a fisionomia pachorrenta nunca se alterava. O piloto tinha de ir mais cedo do que era habitual, motivos de ordem profissional forçavam-no a partir logo após o almoço, Mary já tinha visto muitas coisas e sentia-se demasiado cansada, por isso decidira ficar ali mesmo.Sam e Jackie trocaram um olhar angustiado, sabiam que a hora da despedida tinha chegado; ela trémula de nervosismo saiu para a rua, despediu-se da velha negra pedindo-lhe que olhasse por ele. De seguida dirigiu-se a Sam que estava visivelmente ansioso:
- Agradeço de coração tudo o que fez por mim! Foi uma bênção que caiu do céu, conhecê-lo foi sem dúvida a coisa mais bonita que me aconteceu na vida, eu volto para…
- Psiu! -Ele colocou ao de leve as pontas dos dedos sobre os lábios dela - hei-de ir ter consigo, a nossa história começa agora, por nada deste mundo iria perdê-la. Encontrei-a e nada nem ninguém ma vai roubar…
Abraçaram-se e beijaram-se longamente, como se quisessem eternizar aquele momento para sempre. Quando se separaram tinham ambos lágrimas nos olhos. Ela soltou-se de repente e ele agarrou-a pela mão e puxou-a de novo a si, tornando a beijá-la para finalmente a soltar, enquanto via-a subir velozmente para a avioneta.
Entretanto, um carro da polícia chegou, Sam estremeceu, Mary imobilizou-se perplexa e como que acordando bruscamente de um sonho, gritou mais do que a sua força podia:
- Fuja, fuja Sam, depressa!
- Não minha doce Mary. - Proferiu tranquilamente enquanto tomava as mãos dela nas suas e levava-as ao peito. Observou o semblante estupefacto da velha senhora e esclareceu-a:
- Mary, não vou fugir mais da justiça dos homens, quero começar uma vida nova, está na hora de saldar dívidas, falarei com aquele professor amigo e tenho a certeza que me arranjará um bom advogado. A verdade triunfa sempre! Quanto a si minha querida amiga, conheço uma pessoa que não se importará de lhe fazer companhia, que me diz?
- Sempre tão bom, o senhor doutor…- a voz quebrou-se embargada e os seus olhos, duas luas cheias brilhavam como pedras preciosas, num mar branco de esperança.
- Senhor Sam, tenho uma ordem de captura contra si, faça o favor de me acompanhar.
Pedras- 2002
 

5 comentários:

  1. Sylvia Araujo

    Em@, querida...
    É sempre maravilhoso passar por aqui. Não deu tempo de ler o texto todo, porque ainda estou sem computador, mas esse é um assunto que deve ser discutido sem limites, e por isso, resolvi comentar. A violência doméstica é uma barbárie absurdamente cruel. Escrevi um texto há pouco tempo, baseada na história de uma das milhares mulheres que sofrem com a violência em casa:


    Enganos

    Rose sofre. Chega do trabalho esgotada e, magicamente, transforma vinte minutos em horas. Horas de limpar, cozinhar e se perfumar, até virar a mais linda das flores em tempos de seca. Quando Aderbal passa o cartão de ponto no centro da cidade, ela já está a caminho de casa - suando em bicas, até em dia de frio - porque ai dela se o ônibus lotado atrasar minutos, e a mesa não estiver posta sobre a mais alva das toalhas, herdada da sogra já ida. Ele chega invariavelmente irritado, e ela - de sorriso pronto - já lhe tira a camisa suada, ao mesmo tempo em que lhe enche uma das mãos com o destilado do dia. O boa noite, assim como o afago nos ombros, é sempre mão única. Ela oferece, ele grunhe. Só existem palavras não-ditas na sala, vindas do eco vazio da tevê preto e branco de antena quebrada. Um misto de frases de efeito e chiado agressivo, que Aderbal leva pro banho e arrasta descalço pra cama. Rose deita ao seu lado todos os dias sabendo que a ferida mal cicatrizada do ontem vai voltar a sangrar. Ele monta nela e lhe cospe impropérios, enquanto afunda os nós dos dedos no roxo claro das costelas, até ele escurecer e ficar quase bordô - pelo menos ali a camisa encobre os enganos. Em resposta ao dedo em riste do marido triste, Rose oferece sempre seu menor verso. E a si mesma, sua maior dor. A de nunca poder ser quem é. A de nunca conhecer o amor.


    Sylvia Araujo


    Ela existe muito mais do que imaginamos. Uma tristeza.

    Parabéns pela divulgação dessa luta.

    Uma beijoca enorme pra você.

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  2. O comentário anterior é da Sylvia Araújo, apesar de ter sido eu a postá-lo.
    acontece que ela comentou enquanto eu fazia a experiência do "leia mais" e que não resultou da 1ªvez pelo que eliminei o post. ora, quando quis publicar o comentário da Syl, não o consegui...

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  3. Syl, muito obrigada triplamente:
    - pela visita com rasto,
    - pelas palavras gentis que me deixa,
    - e pela partilha do seu texto.

    quanto a este vou passa-lo a post, se não se importa.
    beijo no seu <3

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  4. NÃO SABIA ...OBRIGADA EMA...VALEU...COMPREENDO QUE NÃO TENHA COMENTÁRIOS PORQUE É GRANDE ...PRECISAVA DE MAIS TEMPO PARA REESCREVER E DIMINUIR O SEU TAMANHO...

    BEIJINHOS

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  5. Pedras:
    é uma experiência que eu tenho de visitar outros blogs. As pessoas são demasiado preguiçosas para ler textos grandes. mas gostei muito do seu conto e em suporte de papel resultaria com certeza.
    De qualquer dos modos, eu não acho que seja o facto do texto ser grande que o post tem poucos comentários. A razão. prende-se, a meu ver com o tema...é demasiado incómodo!
    beijo

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