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domingo, 20 de junho de 2010

As Palavras de José Saramago I


“Que atire a primeira pedra quem não tenha manchas de imigração
na sua árvore genealógica... assim como na fábula do lobo mau que
acusava o inocente cordeiro de escurecer a água do riacho de onde
ambos bebiam. Se tu não emigraste emigrou o teu pai, e se o teu
pai não necessitou de mudar de sítio foi porque o teu avô antes não
teve outro remédio se não ir, carregando a casa às costas, em busca
da comida que a sua própria terra lhe negava. Muitos portugueses (e
quantos espanhóis) morreram afogados no rio Bidasoa quando, pela
noite escura, tentavam alcançar a nado a outra margem, onde se dizia
começar o paraíso de França. Centenas de milhares de portugueses
(e quantos espanhóis) tiveram que se introduzir na culta e civilizada
Europa, para lá dos Pirenéus, em condições de trabalho infames e
salários indignos. Os que conseguiram suportar a violência de sempre
e as novas privações, os sobreviventes, desorientados no meio de uma
sociedade que os desprezava e humilhava, perdidos em idiomas que
não podiam entender, foram pouco a pouco construindo, com uma
renúncia e um sacrifício quase heróico, moeda a moeda, cêntimo a
cêntimo, a fortuna dos seus descendentes. Alguns desses homens,
algumas dessas mulheres, não perderam, e não quiseram perder, a
memória do tempo em que padeceram de todos os vexames do trabalho
mal remunerado e de todas as amarguras do isolamento social. Que
honestos agradecimentos lhe sejam dados por conservar o respeito
que deviam ao seu passado. Muitos outros, a maioria, cortaram as
pontes que os uniam àquelas horas sombrias, envergonharam-se de
terem sido ignorantes, pobres, e por vezes miseráveis, comportaram-se
como se a vida decente só tivesse verdadeiramente começado quando,
por fim e num felicíssimo dia, puderam comprar o seu próprio
automóvel. Esses serão os que estarão dispostos a tratar com idêntica
crueldade e idêntico desprezo os imigrantes que atravessam esse outro
Bidasoa, mais largo e mais fundo que é o Estreito de Gibraltar, onde os
afogados abundam e servem de pasto aos peixes, se as marés e o vento
não preferirem empurrá-los para a praia até que a guarda-civil apareça
e os leve. Aos sobreviventes dos novos naufrágios, aos que puseram
os pés em terra e não foram expulsos, espera-os o eterno calvário da
exploração, da intolerância, do racismo, do ódio à pele, da suspeita, do
envelhecimento moral. Aquele que antes foi explorado e que perdeu
a memória de o ter sido acabará explorando outro. Aquele que antes
foi explorado e finge ter-se esquecido refinará a sua própria capacidade
de desprezar. Aquele a quem ontem humilharam humilhará hoje com
mais rancor. E ei-los aqui, todos juntos, atirando pedras a quem chega
a esta margem do Bidasoa como se eles nunca tivessem emigrado, ou
os seus pais ou os seus avós, como se nunca tivessem sofrido de fome
e de desespero, angústia e de medo. Na verdade, há maneiras de ser
felizes que são simplesmente odiosas.”

José Saramago, prólogo do livro Moros en la Costa de Juan José Téllez

2 comentários:

  1. O céu está de luto...

    beijos querida Em@, texto incrível!

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  2. Eu ainda estou demasiado triste e de luto .
    Amanhã será outro dia.
    Beijo, Márcia.

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